SEGUINDO A CIÊNCIA
Não há hora para a ciência. O meu dia no mundo dos micróbios, células, estirpes, microscópios, descobertas e frustrações começou cedo. Tarde, para a investigadora que ás sete da manhã já estava entre pipetas e tubos de ensaio «as células ficaram a crescer durante a noite», explica ela, entre um bocejo e uma luva de látex. A Clara vem de mau humor, como todas as quartas feiras, dia de «lab meeting». «Ela é uma cientista vespertina» explica-me o meu irmão, meu guia nesta incursão por este mundo da ciência, novo para mim, mulher de letras, de palavras.
Antes do «picar do ponto», é obrigatória uma passagem pelo bar do Instituto. Pelo caminho, encontramos uma colega de experiências, apressada, tinha que ir por a sangrar ratinhos. O meu estômago, sensível depois do pequeno-almoço, reage. De repente, sinto pena daquele animal, que não conheço, mas sei que destino o espera…A Catarina, mulher, é incapaz de matar uma mosca. Mas a Catarina, cientista de 29 anos, sangra ratinhos com a naturalidade de quem bebe um café.
Já antes tinha estado num laboratório de «gente grande», bem diferente do laboratório de físico-química do colégio onde estudei. Tive química até ao 9 ano. Sei que o símbolo químico do oxigénio é O2; que não se misturam ácidos com bases concentradas; e de pouco mais me lembro desses longínquos anos. Sou leiga, iletrada neste mundo. Um peixe fora de àgua, embora sempre tenha ouvido o meu irmão e alguns dos meus amigos mais próximos falarem de ciência em conversas de café, mas sempre ausentei o meu pensamento para mundos mais distantes deste, próximos do meu, quando a conversa era mais ciêntifica.
Esperava encontrar um laboratório arrumado, cheio de frascos com cores transparentes, fumos com cheiro a novo. Deparei-me com um emaranhado de plásticos coloridos, com legendas da segunda Guerra das Estrelas, caixas e caixas de pipetas, luvas, frascos, etiquetas.
Imaginava um cientista como um homem com um ar sério, concentrado, de óculos, com luzes estranhas à volta, perdido em tubos de ensaio, com uma imaculada bata branca, um corte de cabelo fora de órbita, com uma linguagem incompreensível para o ser humano que vive fora daquele mundo. Fora de orbita, naquele mundo, só mesmo eu. Ali, o ser estranho, o ET social era eu. As palavras que ouvia não me diziam nada, apenas me faziam sentir um estrangeiro no meu pais, alguém que quer entender o que ouve, mas que por muito que se esforce, aquelas palavras soam a sons engraçados, como os nomes do chineses, tons sonantes, mas sem sentido na minha cabeça. As piadas são-me desconhecidas, estranhas. Riem-se de piadas com células, telomeros, gozam com o colega de bancada, que ri, enquanto põe um liquido amarelado num frasco redondo, onde crescem células, embora eu nada veja.
Não usam a bata branca da minha imaginação, usam roupa normal, embora este normal possa sair do meu sentido estético. Usam calças de ganga. São gente. Acham piada ao meu macacão, que me faz parecer uma miúda reguila, pronta a fazer asneiras, mesmo sem saber que as está a fazer. Basta, para isso, mexer num frasco, tirar um post it do sítio, tropeçar num dos fios do emaranhado que habita no chão. Vagueiam pelos corredores daquele sítio, um amontoado de estantes, a que eles chamam «bancadas», como dançarinos num palco. Com passos demarcados, seguros, embora sejam desajeitados no andar, são seguros no que fazem.
Misturam o português com o inglês, parecem imigrantes já pouco habituados á língua materna, mergulhados nas potencialidades de uma nova língua. Nas paredes do laboratório vejo frases de humor, soltas, como notas de uma sinfonia desordenada. Gozam uns com os outros, gozam com eles mesmos, com os seus fracassos. Falam das experiências como pais falam dos filhos. Mas os filhos, eles podem educar, moldar. As experiências têm resultados livres, não os controlam. Às vezes tentam. Apenas conseguem perceber por que caminhos seguiu aquele filho. Mas isto, quando não se perdem nas encruzilhadas de números, células, reagentes e leis universais, tão distantes para mim, como eu estou distante. O meu pensamento vagueia pela a observação daquele mundo, que tento seguir, mas não compreender. Aquele não é o meu mundo. Mas toca-me. Aquele universo, paralelo ao meu universo de letras e palavras, cruza-se comigo. Seja no comprimido que tomo para a dor de cabeça, causada pela falta de descanso, seja nas descobertas que eles tentam ter.
Trabalham com o flagelo do cancro. Não vêm doentes, vêem experiências. Mas não cobaias. Não ambicionam o Nobel, mas o conforto da descoberta. A fama, não os conduz. Guia-os o sentido de humanidade, fazer a diferença pela descoberta. Sabem que é uma miragem, um sonho. Mas o «sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança.» Sigo-lhes os sonhos, sigo-os na sua ciência. Caminho com eles, do outro lado do entendimento.